Da saudade…

“Não importa que a tenham demolido: a gente continua morando na velha casa [em que nasceu].”     (Mario Quintana)

saudadeJá ouvi dizer que ser saudosista é algo negativo, que sentir saudades de épocas passadas é sentir-se incapaz de ser feliz com o presente. Há quem diga que a pessoa saudosista costuma revisitar o passado na esperança de encontrar nele aquilo que não encontra na vida atual. Não sei se concordo muito com isso, pois embora contente com meu presente sou uma saudosista por natureza.

Saudade é uma palavra tão linda, tão carregada de sentimentalidade e que, dizem os entendidos, só existir na doce língua portuguesa; já ouvi dizer, inclusive, que nenhum outro idioma é capaz de dar a essa palavra a conotação tão forte e significativa que lhe é de direito. Não sei se isso é realmente verdade, só sei que pra mim os sentimentos mais doces são justamente aqueles inspirados pela saudade: de uma pessoa querida, de um lugar, de uma época, de uma música, de um cheiro… Das memórias saudosistas que tenho só guardo aquelas que de alguma forma me arrancam um sorriso.

Dia desses, peguei-me “saudadeando” sobre quando eu era moleca, quando ia de férias à casa de minha avó, a Santa Helena, no Maranhão. Naquela época essa cidade nada tinha de moderna, era um lugar pacato como tantos outros do nordeste brasileiro.
Santa Helena não tinha cinema, não tinha shopping, não tinha praia, mas ainda assim lembro-me com muito carinho daquele tempo: o tempo das brincadeiras, das despreocupações, dos cabelos soltos ao vento, dos banhos de rio e das carreiras pelas ruas sem carros. Era o tempo de pular elástico, de jogar pedrinhas na calçada e brincar de roda. Era o tempo de milho assado, de bolo de macaxeira e fogueira de São João.

Lembro-me tão bem da casa de minha avó, ou melhor, de várias casas nas quais ela morou. Porém, a que mais forte ficou na memória era ali, na Rua Doutor Paulo Ramos. Sua casa era a última da rua, depois dela apenas floresta, que nós, crianças, chamávamos ‘mato’.
A casa de minha avó não era tão grande, mas tinha espaço suficiente para abrigar quantas pessoas passassem e precisassem ficar por lá: parentes e conhecidos que vinham de longe. Um dos sinais de que se tinha visita em casa era o monte de redes penduradas e a cangalha na janela… Ah, como eu me lembro da famosa cangalha na janela!

O quintal era gigante, parecia um mundo… Mas, pensando melhor, depois de tantos anos a memória pode ter me enganado, quiçá fosse gigante apenas na minha concepção de criança. Sei, no entanto, que havia de tudo no quintal de minha avó: bananeiras, mangueiras, laranjeiras, limoeiros, cajueiros e um pé de melão. Um único pé de melão, cuidadosamente plantado ao lado da janela da cozinha.

 

– Que fruta é essa? – Perguntavam os vizinhos.
– Fruta de gente rica! – dizíamos em uníssono.
Quase ninguém em Santa Helena comia melão. Éramos uns privilegiados.

 

A Santa Helena daquela época, localizada à margem direita do rio Turiaçu, era tranquila; sua gente, simples; suas paisagens, naturais e bonitas. Pelas ruas era comum vermos os velhos sentados num mocho, à porta de casa, consertando a tarrafa. Escutávamos familiarizados por volta do meio dia a famigerada buzina (feita em uma garrafa com o fundo vazado) que servia para avisar a população de que alguns pescadores tinham chegado da pesca e que havia peixe à venda.
As carroças circulavam sem parar de um lado para o outro fazendo mudanças, servindo de táxis, vendendo frutas e miúdos de animais. Os cachorros soltos nas ruas brincavam no meio da garotada, mas também nos assustavam quando saía a conversa de que tinha cachorro doido à solta. Cachorro doido, fui saber anos mais tarde que nada mais era que cachorro com raiva por falta de vacina… e eu morria de medo de cachorro doido!

As crianças corriam livremente, brincavam de pega-pega, esconde-esconde e empinavam pipas, que lá chamávamos, papagaio. Crianças inocentes que éramos, se bem que naquela época também fazíamos pequenas maldades, colocávamos arapucas e esperávamos que algum passarinho caísse na armadilha… Pensando bem, nem tão inocentes assim, naquele tempo também sabíamos ser cruéis.
As mulheres saíam de manhã cedinho para um dia de trabalho duro, voltavam à tardinha com um cofo na cabeça cheio de coco babaçu que elas passavam o dia inteiro quebrando. Vendiam o coco na quitanda da esquina e lá mesmo já compravam o querosene pra lamparina.

Apesar de toda a simplicidade, o lugar também tinha seu dia de glamour, o dia da Festa de Santa Helena, a santa padroeira que dá nome à cidade. Nesse dia a cidadezinha  inteira se vestia de gala, as mulheres com seus vestidos de cetim brilhoso e mangas bufantes, cada uma querendo se “amostrar” mais que a outra.
Nesse dia, chegava um parque de diversão à cidade, trazendo uma única roda gigante e algumas barquinhas de madeira. Sentávamos nessas barcas, segurávamos numa corda e puxávamos com muita força para fazê-las balançar de um lado para o outro. E elas balançavam – pra lá e pra cá – lá nas alturas.

A cidade inteira se levantava, as crianças se divertiam, as velhas vendiam doces e mingau de milho, a música tocava alto e contagiante, o povo dançava, ria, aproveitava. A festa acabava, a cidade dormia… e acordava outra vez na mesma monotonia.

Eu sinto uma saudade enorme dessa monotonia e naturalidade. Tempo bom esse, quando as pessoas saíam sem medo de voltar tarde da noite. Quando ficávamos sentados à porta de casa até altas horas contando as estrelas do céu. Quando o único medo que nós, crianças, tínhamos, era de amanhecer chovendo e não podermos ir às ruas brincar.

Ah, mas isso foi naquele tempo. Há muito, muito tempo.