“O senhor… Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão”.

Sempre tive uma vontade muito grande de ler Grande Sertão. Tantas vezes escutei que era uma obra sem igual, que valia muito a pena… por isso em duas ocasiões comecei a leitura, mas lamentavelmente foram tentativas fracassadas, pois eu sempre parei no meio do caminho ou, para ser mais sincera, muito antes do meio do caminho. A leitura não fluía como eu esperava, eu perdia a motivação e, quando percebia, já tinha deixado o livro de lado e estava a ler outras coisas.
Finalmente, em agosto de 2011, decidi insistir no livro e fiz disso uma meta. Só que dessa vez fui muito além das primeiras páginas, fui conquistada pelo encanto da narrativa de Rosa e consegui concluí-la com lágrimas nos olhos.
Acho que escrever aqui que amei a história seria muito pouco, pois Grande Sertão é um livro esplêndido e encantador… não digo isso apenas porque se trata de um clássico da literatura brasileira, mas pela emoção que senti durante toda a leitura.
Confesso que no início tive uma certa dificuldade em entender a linguagem tão peculiar de Guimarães, porque seu texto sem capítulos demarcados, recheado de neologismos e invencionices tornou a leitura muito lenta. No entanto, essa dificuldade foi desaparecendo no decorrer da narrativa. À medida que fui entrando em contato com as muitas reflexões de Riobaldo, o protagonista, essa mesma linguagem passou a soar quase familiar.
Grande Sertão é narrado em primeira pessoa por Riobaldo, um jagunço idoso que conta para um interlocutor (que desconhecemos) seus feitos heróicos ocorridos durante sua juventude. Em uma narrativa totalmente não linear e tendo como pano de fundo as guerras de jagunços no sertão mineiro, Riobaldo, nosso personagem/narrador, vai colocando para fora como uma espécie de catarse todas as suas inquietudes: ora causadas por suas dúvidas sobre existência do Diabo e ora causadas por seu amor proibido por um outro homem.
Como se fosse uma viagem psicológica, vamos adentrando esse Sertão de Guimarães e conhecendo um homem atormentado e contraditório, que crê em Deus, mas precisa fazer um pacto com o Diabo para poder sentir-se mais forte. Passou-me a impressão de que, ao contar sua história para o forasteiro, Riobaldo experimenta uma libertação de todos aqueles sentimentos que foram reprimidos no passado, mas que, “presentemente,” estavam ainda ali machucando, causando desassossego. O velho jagunço sente alívio em se libertar desses fantasmas do passado, mas age como se esperasse o tempo todo ouvir do seu interlocutor algo que de fato comprove a não existência do Diabo e da impossibilidade “de com o demônio tratar pacto,” porque ele próprio não sabe, não tem certeza, está confuso e atormentado por essas dúvidas. “Deveras? É, e não é. O senhor ache e não ache. Tudo é e não é.”
No início Riobaldo luta com a tropa de Medeiros Vaz e Joca Ramiro contra os homens do governo, contra as leis que, segundo ele, só beneficiavam aqueles que são bem-nascidos, que fazem parte do sistema. Depois, Vencer Hermógenes, outro jagunço de um bando rival e o antagonista da história, tornou-se o objetivo e a fixação do protagonista. O jagunço Riobaldo acreditava que Hermógenes tinha o corpo fechado por haver feito um pacto com o Demo, foi por conta disso que ele, lá na encruzilhada das Veredas Mortas, também fez um terrível pacto com o Diabo. Nosso protagonista luta para derrotar seu rival e, assim, vingar Joca Ramiro, o antigo chefe do seu bando que foi assassinado à traição por esse jagunço. “O Hermógenes fez o pauto. é o demônio rabudo quem pune por ele.”
A escrita de Guimarães apesar de difícil é também inovadora e cativante: O jeito de ser do sertanejo e sua singular sabedoria, as paisagens do sertão tão sabiamente descritas e a forma como o autor aborda dilemas existenciais fizeram com que eu me encantasse ainda mais com a história e compreendesse melhor o drama interior de Riobaldo. Suas reflexões, suas dúvidas e medos, de alguma forma, enriqueceram a minha perspectiva enquanto leitora. Cada causo por ele contado levou-me a refletir também. Então, sonhei com ele, lutei com ele, amei com ele.
“O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.”
O seu amor proibido/reprimido por Diadorim, outro jagunço que fazia parte do seu bando, é também um tema forte no romance… Guimarães nos brinda com uma sublime história de amor: triste e impossível é bem verdade, mas nem por isso menos bela.
Quem não seria capaz de ficar tocado em uma passagem como esta?
“(…) meu amor inchou, de empapar todas as folhagens, e eu ambicionando de pegar em Diadorim, carregar Diadorim nos meus braços, as muitas demais vezes, sempre”.
Enquanto lia Grande Sertão não cansava de pensar a respeito daqueles leitores que não conseguem ler a obra no original. Sempre tive muita curiosidade em saber mais sobre as traduções dessa obra para outras línguas. Como será que traduziram os neologismos, a fala do sertanejo, as invencionices de Rosa? Será que foi possível captar a essência das personagens? Será que a linguagem criada por Rosa não perdeu seu encanto quando transportada para outro idioma? Será que o leitor consegue se sentir cativado da mesma forma que nós, falantes da Língua Portuguesa, nos sentimos? Depois de todos esses questionamentos cheguei a uma única conclusão: Sou mesmo uma grande privilegiada por poder ler Grande Sertão no original.
Grande Sertão é, finalmente, um poço de sensibilidade e lirismo… Ah, Riobaldo, Diadorim, Joca Ramiro, Zé Bebelo, Hermógenes, Medeiro Vaz… Já estou mesmo a “saudadear”.
Sobre o autor:
Joao Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo, Minas Gerais, a 27 de junho de 1908. Formou-se em Medicina em 1930, clinicou em Itaguara e mais tarde serviu como médico voluntário durante e Revolução de 32. Era poliglota. Seguiu a carreira diplomática e foi nomeado cônsul em Hamburgo, na Alemanha. Exerceu outras atividades diplomáticas na Colômbia e França. É autor de vários livros, entre eles, Sagarana, Corpo de Baile, Primeiras Estórias e Tutaméia – Terceiras Estórias.
Um vídeo excelente sobre Grande Sertão (contém spoilers)

Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for… Existe é homem humano. Travessia.
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** A foto acima foi retirada da net. Não sei quem é o autor, mas sei que fez parte de uma exposição exibida no Grupo de Gravura Cidade de Florianópolis.